quinta-feira, julho 20, 2006

Recuerdo 06 - MEU TIPO INESQUECÍVEL

Hugo Caldas

Dentre as pessoas com quem trabalhei na Panair do Brasil destaco a figura exemplar e única de Jorge Paraíso. Criatura difícil de qualquer descrição. Não era gordo nem magro. Rosto cheio, mas afilado, ostentava um ralo bigodinho sob o nariz aquilino, pele rosada quase vermelha, cabelo ralo, modelo mal-com-Deus. Uma figura. Chamava todo mundo de “colega”. Até os seus supervisores imediatos eram merecedores da maneira amistosa e singular usada por Jorge. Tinha, no entanto, uma predileção especial para com o Jogo do Bicho. Raro era o dia em que não jogava e ganhava. Ganhava pouco é claro, pois jogava pouco, devido a inúmeras obrigações. Falava um inglês péssimo razão pela qual havia sido destacado para o setor de despacho de cargas. Mesmo assim, foi convidado a deixar a Panair para trabalhar com a BOAC, empresa britânica que à época operava no Recife. O que ninguém nunca conseguiu saber é como ele e o gringo, que não falava uma gota de português, conseguiam se entender. Mr. Charles Booher, ostentava bigodes retorcidos à Alec Guiness e fumava um cachimbo daqueles com chapéu. Era desses ingleses da gema que param tudo que estão fazendo às cinco da tarde para uma xícara de chá. Jorge cultivava também uma proeminente barriga, fato que se agravava quando algum botão da camisa pulava fora, literalmente. Ficava aquela coisa mal arranjada, horrível de se ver, deselegante todo. Mas ele não estava nem aí. Várias vezes ouvi o gringo falar com o melhor do seu sotaque, em tom de censura, “George, my dear, could you manage to look a bit more respectable?” Houve um tempo em que o aeroporto ficou interditado para aviões de grande porte e a BOAC se mudou temporariamente para Natal. E lá se foi Jorge. Fez muito dinheiro, recebia em dólares, pois estava fora da base. Jogou a maior parte fora, na famosa fezinha diária. Estava compromissado e a noiva arranjou uma maneira de casar logo e se mandar para Natal a fim de segurar o dinheiro. Foi por essa época que ele melhorou de vida e chegou a comprar uma pequena casa em Recife. Com a derrocada da Panair nossos caminhos se separaram e nunca mais o vi. Somente vim a saber de Jorge pouco depois da sua passagem para o andar de cima, no interior do Paraná. O que ele fazia por lá, não tenho a menor idéia. “Colega, cuida dessas bagagens aí, troca àqueles pacotes de lugar, faz qualquer coisa, que o tal sujeitinho falso está te cubando”, disse-me ele um dia, alertando sobre um tipo que vivia querendo derrubar todo mundo. Certa tarde convidei-o para um chopinho no Savoy. Lá pelas tantas, ele começou a rabiscar em um exemplar do “O Diário da Noite”, fazendo e refazendo cálculos e mais cálculos. Fiquei curioso e perguntei o que significavam aqueles rabiscos. Respondeu como sempre, “colega”, estou com um problema que vem me tirando o sono. “Minha noiva está precisando fazer uma operação de apêndice e nós não temos um centavo sequer”. Tudo muito bem, mas e esses cálculos? Respondeu-me com outro “o colega quanto tem de dinheiro aí…?” Não lembro do número exato, mas juro que a coisa se passou da maneira a seguir: de acordo com seus cálculos, juntando o meu dinheiro com o dele, nós poderíamos tomar mais um chope, ele jogaria uma certa quantia em uma milhar que o vinha atormentando e compraríamos duas entradas para assistir “Spartacus”, que estava passando no Art-Palácio. Quando do final da sessão ele iria receber o prêmio em uma banca de bicho ali perto, junto da Botijinha. Não deu outra. Ao término do filme, Jorge ganhou o suficiente para devolver o que havia pedido emprestado, pudemos tomar mais dois chopes, ele pegou um táxi para a casa da noiva, que, com a quantia exata, foi operada na semana seguinte e creio eu, passa muito bem até hoje. Nunca entendi direito o que se passou naquela tarde. “Só sei que foi assim”.

2 comentários:

Luna disse...

Durante a leitura parece que me transportei para o passado e revivia todos os momentos alegres e tristes da época....Um abraço Caro Hugo e té mais,Zeneudo Luna

Anônimo disse...

Prof. Hugo, foi muito bom revê-lo.
Parabéns por sua excelente memória!
Abraços,
Norma