quinta-feira, fevereiro 04, 2010

Recuerdo 38 - A Matriz de Pilar e a Escadaria de Odessa

Hugo Caldas

No início da década de 70 saí de viagem à Paraíba, mais precisamente para a cidade de Pilar, na busca de certos documentos dos quais precisava. Me faziam companhia, meus pais e minha mulher. Dirigia cuidadoso, mas despreocupadamente. Mal sabia eu o que o destino me preparava alguns quilômetros mais a frente. Duas constatações: melhor dizendo dois sobressaltos.

Tudo começou quando tomei a estrada vicinal saindo da BR-230. Esse pequeno trecho dizem, foi construído para a visita de D. Pedro II em 1859, informação a ser confirmada, visto que historicamente Sua Majestade viajou até a cidade, com sua comitiva, à cavalo.

A estradinha era um segmento de terra batida. Subitamente algumas pedras começaram a atingir o carro por baixo, e.... aquele som bem compassado... aquela trepidação... aquelas batidas cadenciadas... foram formando um cenário obscuro, denso, lembranças e imagens difusas começaram então a invadir a minha mente. Parei no acostamento. Inclinei a cabeça e descansei sobre o volante. Minha mãe assustada perguntou se eu estava bem, o que estaria acontecendo. Por que havíamos parado?

Nitidamente a cena foi clareando e aos poucos pude lembrar uma certa viagem feita pela madrugada. Uma viagem de emergência para a capital.

Me via fraco e deitado, metade no colo da minha mãe e metade no do meu pai, no banco traseiro do automóvel. Os solavancos do carro me faziam mal. Dores fortes na barriga, ânsia de vômitos. Foi uma longa e torturante jornada até João Pessoa aonde chegamos com o sol já alto.

De imediato fomos ao consultório do Dr. João Soares, pediatra, que era amigo do meu pai e cuidava de nove entre dez crianças na cidade. Em lá chegando fomos atendidos por sua enfermeira, uma senhora chegada nos anos e a quem todos chamavam "Dona Moça". Depois de examinado, foi diagnosticada uma crise aguda de disenteria amebiana fruto talvez de alguma coisa que eu havia comido. O Dr. João Soares prescreveu remédios e requisitou exames.

Passado o susto e mortos de cansaço fomos para a casa do meu avô na Rua Capitão José Pessoa. Medicado e graças aos cuidados extremosos da minha avó e seus chazinhos ao cabo de dois ou três dias estava eu pronto para outra.

A casa era arrodeada por um enorme quintal com inúmeras fruteiras, especialmente manga espada. Tive o cuidado de separar algumas e as coloquei em uma caixa de sapatos. Foi o meu presente para Zé, o chofer do carro de aluguel que nos havia trazido e que desse dia em diante passou a ser chamado "Zé das Mangas". Ainda hoje, ao saborear uma bela manga espada me transporto a esse quintal da minha meninice. Tinha eu à época três ou quatro anos de idade.

Vamos voltar a Variant vermelha estacionada no acostamento bem no início da história.

Esperamos um pouco para que a minha mãe se recuperasse, pois se emocionou, chegou a chorar, lembrando dos fatos passados. Difícil acreditar que eu havia lembrado de tudo aquilo. Retomei a viagem e mais 5 quilômetros estávamos finalmente na cidade do Pilar onde um segundo sobressalto estava por acontecer.

Em pouco mais de 30 anos Pilar pouco mudara. Tudo estava praticamente como eu conhecia. Até encontrei o pé de Fícus-Benjamim onde o meu avô se abrigava para conversar com os amigos, durante os nossos passeios à cavalo.

Após correr os passinhos como num périplo sentimental, A Matriz, A Cadeia Publica, onde houve o baile em homenagem, ao Imperador, e aconteceu a famosa dança de Sua Majestade com a minha Tia Iaiá, a praça onde eu caçava borboletas, o Sobrado, a Villa Maria de Lourdes, a casa de Palmira e Enedino à beira do Rio Paraíba onde várias vezes assisti a corrida célere das águas em dia de enchentes. Hoje o Rio Paraíba está seco. Tudo isso me fez novamente relembrar outros fatos.

Meu avô possuía duas casas na cidade. O Sobrado e a Villa Maria de Lourdes.

A Villa Maria de Lourdes eu não conheci. Tenho apenas uma visão meio embaçada da casa pintada de azul e branco, com imponentes grades de ferro protegendo o jardim e naturalmente lembro o dístico que encimava a entrada principal. O que me era muito mais familiar e do qual me recordo muito bem era o sobrado, conhecido por todos como, "O Sobrado de Seu Ambrósio.”

O sobrado era uma edificação simples. Lembro da enorme escada externa que levava ao andar de cima onde todos moravam. No térreo era a loja de tecidos do meu avô. Por trás tinha a oficina de carpinteiro onde, nos intervalos dos seus afazeres, ele me construía uns carrinhos-de-boi. No descampado da parte térrea, bem ao lado da escadaria existia um pomar coalhado de diversas fruteiras e uma horta para onde a minha mãe me levava a contragosto, ainda em pijamas, diariamente, bem cedinho, para colher e comer tomates (eu detestava) e uma porção de outras verduras. Ela tirava os tomates do pé e mesmo sem lavar, comia. Minha mãe muito provavelmente jamais provou comida enlatada, era tudo fresquinho, na hora, razão talvez da sua longevidade.

Quando assisti ao Encouraçado Potemkin, filme de Serguei Eisenstein, de 1925, a cena clássica na imensa escadaria de Odessa não me disse muita coisa. Toda a alegria das pessoas, aquela luz, aquela aglomeração, substituídas pelas imagens chocantes de repressão violenta, as enormes sombras, não foram novidade para mim. Tudo muito natural. Parecia conhecer a situação. Parecia ter vivido algo semelhante.

Era o mês de maio. Acordo no meio da noite. O que significa dizer que havia acordado por volta das oito e meia. Logo procurei por minha mãe. O canto mais limpo.

- Foi para a novena, disse uma das muitas agregadas da casa.

A igreja era quase parede-meia com o sobrado. Consegui burlar a vigilância das pessoas e do jeito que estava, pés descalços, vestido num camisolão que me cobria quase todo, saí em desabalada carreira em direção à igreja no exato momento em que a novena terminara e as pessoas começavam a sair. À frente de todos, descendo a imensa escadaria, vinha Neuza uma jovem muda que emitia uns sons horríveis e da qual eu tinha verdadeiro pavor. Aquela multidão vindo para mim, eu ali, petrificado, sem poder em absoluto me mover, uma onda gigante de pessoas vindo na minha direção. Eu tremia feito vara verde. Até que a minha mãe ao sair me avistou, me tomou nos braços, acalmou a minha angústia, me levou para casa e me passou uma descompostura em regra.

Foram necessários pouco mais de trinta anos para a revelação constrangedora: A imensa escadaria da Matriz de Pilar, a minha Escadaria de Odessa, tinha apenas três ou quatro míseros degraus.

7 comentários:

Fábia disse...

Oi Hugo!
"Uma senhora chegada nos anos"... Que significa?
Dona Moça era idosa?

Por que você não escreve um livro sobre suas memórias de infância?

Gostei da maneira como você descreve o seu mundo naquele tempo.
Bjs
Fabia de Carvalho

Zeneudo Luna disse...

LEMBRANÇAS DO PASSADO.... BONITAS... ABÇ... OBG.... ZENEUDO

Mary Caldas disse...

Hugão
Hoje reconheço que vc deveria ter se tornado escritor.
Erico veríssimo nos "pampas gauchos" Hugo Caldas descrevendo suas memórias em terras do nordeste...

Não me intimido de dizer que vc sabe mexer com as palavras com muita beleza qdo se reporta as suas memórias.
Concordo com Fabia pq não editas um livro? Mary

Manfredo Caldas disse...

Sobre a sua "Escadaria de Odessa", tenho a dizer que trata-se de um belo conto que daria um cuta metragem bem enxuto. Bom mesmo, tem atmosfera, ritmo. É muito bom. Manfredo

Marcia Barcellos disse...

Hugo,
Interessantíssimo o seu relato. Como vc conseguiu "guardar" na memória e no coração tantos fatos, quando era ainda tão pequenino?
Imaginei o momento em que vc se deparou com a "sra. Neuza "...mostrando assim todo pavor daquele momento.
Que criança esperta!!!Antenado em tudo o que se passava. Muito bacana seus relatos, ótimos de ler....
Abraços Márcia

ana arnaud disse...

Concordo com todos os comentários acima. Estou tb esperando o livro e devo lhe confessar que diariamente procuro, no seu blog, textos desta espécie, de memórias vivas e de saudades eternas. Os seus textos são maravilhosos. Parabéns!

Anônimo disse...

Meu amigo Hugo,sempre que a emoção se une as lembranças discorre em palavras as cenas...são tão vivas, tão detalhadamente ditas que;quem as lê quase sente o perfume, quase vê-se as cenas, árvores, sol, sombra...VIDA! Escreve um livro de memórias, séria fantástico! Bjão, Lígia Tabosa.