domingo, novembro 04, 2012

A reciprocidade da misericórdia

Hugo Caldas

A bem da verdade esta versão de Androcles e o Leão é uma singela homenagem ao poeta Celso Almir que nos idos de mil novecentos e preto e branco costumava, em qualquer roda de chope, contar em tom professoral, esta comovente história com o final inusitado aqui reproduzido. HC

A primeira narração conhecida deste fato se encontra no livro sétimo de Noites Cabírias (Noctes Cabiriae), escrito no século III, por Audo Lotufus. Portanto, esta é uma história clássica exemplar. Uma narrativa que mostra a amizade que pode existir entre seres filhos de Deus, distintos em sua natureza mas idênticos aos olhos do Padre Eterno. Esta é a história de Tertius, o escravo e seu leão, Simba.

Tertius, natural da Ilha de Creta, foi feito escravo quando perambulava alegremente pelas praias da sua terra natal. Levado ao mercado de escravos em Roma, foi, de imediato, comprado por um Cônsul romano de nome Paullus Lapinus, que dele tanto se engraçou a ponto de o levar para preencher suas noites solitárias nas províncias de África onde era o administrador de César. Durante uma batalha da terceira Guerra Púnica, aproveitando-se de um providencial cochilo da Guarda Pretoriana, conseguiu Tertius escapar do jugo do cônsul Paullus.

O escravo após vagar horas e horas sem nada para matar a fome e a sede, se refugia em uma caverna, onde também se refugiara um leão ferido e faminto. Com o passar dos dias o leão e Tertius foram se aproximando para finalmente, como por um milagre Tertius conseguir retirar um enorme espinho da pata do leão. Alguns dias de tratamento com Acqua Rabellus, mais aplicações de um pó branco milagroso chamado anaseptillus e eis que Simba se recupera totalmente das suas feridas. Com o passar de mais alguns dias, Simba, o leão torna-se manso em relação ao companheiro e salvador, agindo como um gatinho domesticado, abanando o rabinho e brincando com Tertius. Viveram juntos desde então, até que certo dia Tertius, que havia saído da caverna a procura de comida, foi capturado pelos soldados romanos e repatriado. Em Roma foi entregue ao Cônsul Paullus. Certa noite, Tertius não aceita os apelos amorosos do Cônsul que ao ser recusado pela enésima vez, decretou magoado num arroubo bem à moda dos Cesares:

- Às feras, ao Circo Máximo!

E assim o fugitivo escravo foi condenado a ser devorado pelas feras selvagens, no Coliseu de Roma. Na presença do imperador Calígula, a mais imponente das feras, o rei dos animais, o leão, entra na arena furioso e faminto pois vinha de 15 dias sem comer a fim de triplicar a sua ferocidade. Divisa a figura de Tertius, acha-o parecido com alguém do passado. Tertius, por sua vez também reconhece Simba, o seu leão e permanece estático para o que desse e viesse. Simba prepara o bote e avança. Arrodeia o escravo. Os dois se olham e se reconhecem finalmente. Tertius acaricia levemente a juba de Simba que em sinal de reconhecimento começa a lamber os pés de Tertius carinhosamente. Comoção no Circo. Simba novamente exibe sua gratidão para com Tertius, de um pulo o abraça fraternalmente. Um óóóó percorre o estádio. A multidão apela ao Imperador fazedo o gesto do polegar para cima. Então, Calígula perdoa o escravo, em reconhecimento desse testemunho do poder da amizade. O leão é deixado em sua posse. Subitamente...

Simba deita-se aos pés de Tertius e continua a lambê-los. Lambeu, lambeu, lambeu e depois comeu Tertius inteirinho. Só deixou os ossinhos.

Moral da história: Com uma fome de 15 dias não há reciprocidade de misericórdia que se sustente. Saulo 3.19.22

2 comentários:

Anônimo disse...

Infelizmente seu novo final para essa estória que leio e releio desde menino é real.

W. J. Solha

Celso Almir disse...

Hugo:

A tua memória é implacável.

Abraço grande,
Almir