sábado, outubro 01, 2011

PUBLIQUE-SE A LENDA



W.J. Solha






Sobre um lance de Jogadores de Ilusões, o novo livro de José Bezerra Filho

Venero Diego Velázquez, deslumbra-me a História da Arte de Sheldon Cheney, mas o historiador disse do pintor:

- Posta de lado sua maneira perlácea e fresca de pintar, ele pouco fez para que merecesse um posto acima da média dos pintores de êxito da corte.

Você acha?

Respeito Ariano Suassuna, considero João Pessoa o governante mais sério que a Paraíba já teve, mas o escritor – filho de oligarca assassinado no movimento de 30 – recusa-se a chamar a capital da Paraíba pelo nome, considerando vilão aquele que tenho como herói. Putz!

LEVANDO PARA O LADO PESSOAL
Eis minha versão (diversas vezes abordada) de um momento sumamente importante (para mim) de minha vida:

Meus pais – lá em Sorocaba, SP - não me permitiam, entre outras coisas, que aprendesse a nadar. O velho vira amigos seus, na juventude, afogando-se juntos. Daí que, de repente, me vi em Patos, alto sertão paraibano, em 62, aos 21 anos, no açude da fazenda de seu Valdenor, cliente do Banco do Brasil, onde eu agora trabalhava - vendo colegas saltando da ponte de uma estrada abandonada que cortava a represa em duas. Perguntei ao proprietário se poderia me arranjar uma corda. Amarrei-a na cintura e dei ao fazendeiro a extremidade para que a segurasse enquanto eu atravessava, “a nado”, a água funda debaixo dela. Tornei-me o espetáculo do dia. Fiz minha Pesach-Travessia –livrei-me do cordão umbilical, na margem oposta, proclamei: Agora vai sem corda. Me debati, me debati, cheguei ao outro lado, vi que havia nadado, e me senti um homem!

Versão de seu Valdenor, em alto e bom som, ao me reconhecer entre os funcionários da Agência Centro do BB em João Pessoa, anos depois:

- Oxente: mas num é o Solha! Pois esse cabra, recém-chegado de Son Paulo a Patos, por volta de 62, estava se debatendo na parte rasa de meu açude, quando eu lhe disse: Cabra, aí tu nunca vai aprender a nadar! Venha pra debaixo da ponte, que é fundo! Ele chiou, me danei: Vem cá, rapaz! E lhe amarrei uma corda na cintura, mandei que ele se debatesse n´água debaixo da ponte, enquanto eu o sustentava de cima, ele atravessou o trecho quase se acabando, aí eu lhe disse: Agora volte sem corda! Ele se apavorou. E eu: Vai, hóme! Deixa de ser frouxo!

Isso foi tão terrível, pra mim, quanto a versão – documental - de Tiradentes indo pra forca com a cabeça e o rosto rapados.

NO LIVRO DO BEZERRA
Vai daí que o José Bezerra Filho me chega agora com um livro bem bolado - Jogadores de Ilusões - no qual ele e o filho Rucker, violinista da sinfônica paraibana, jogam xadrez e conversa fora, o velho – como de costume - passando experiência pro novo. Ele fala de três lembranças suas a meu respeito, das quais uma é ficção pura: a de que teria armado um fantasma complicado para me assustar e a outro colega do BB de Pombal, o Lessa. Teria nos apavorado tanto que os dois, moradores, com ele, de uma república, insistimos em dormir no seu quarto. Lá pelas tantas, ele conta outra passagem, a que vivemos em 63, 64, e que não incluí na Pequena Arqueologia de Minha Vida Pregressa - divulgada pelo blog eltheatro, de meu amigo Elpídio Navarro - por não me parecer ético fazê-lo. Reproduzo-a aqui, já que o mal está feito, para mostrar o que são versões diferentes de um mesmo fato.

Bezerra começa:
Éramos todos jovens, solteiros, cheios de dinheiro porque o Banco, naquele tempo, era o melhor emprego do país. O salário do banco era realmente bom, mas não me lembro de viver cheio da grana. Estávamos bem, claro, considerando que vínhamos de famílias pobres e de empregos que nos pagavam mal. Ao me transferir do Banco do Commércio e Indústria de São Paulo, para o Banco do Brasil, passei a trabalhar metade do tempo e a ganhar o dobro. Foi como pude respirar pela primeira vez, e ajudar meu irmão e meu pai.

Havia um boato segundo o qual, quando as meninas da cidade, ao amanhecer, pediam a bênção às mães, estas lhes respondiam: “Deus te dê um bancário!” E o pai completava: “Do Banco do Brasil”. Desnecessário dizer que “chovia” mulheres em nosso roçados.

No meu, nunca choveu. As jovens pombalenses, na verdade, concentraram seu interesse num colega alagoano, Otávio Lessa Sarmento. Ao contrário dele, nunca fui do tipo charmoso ou do que, na época, chamavam de galã. Tanto que, no cinema, depois, vim a fazer papel de pistoleiro, delegado, tenente de polícia, agricultor violento, milionário de passado obscuro – sempre mal-encarado. A única jovem com que namorei, nesse período, foi Ione, com quem me casei.

Logicamente, - escreve Bezerra - esse tipo de coisa provocava o ciúme dos rapazes filhos da cidade. E nós sentíamos que a inveja e o despeito que alimentavam por nós poderia descambar até para a violência. Por isso guardávamos certa reserva, conscientes de que, quem anda em terra alheia, pisa no chão devagar!

Não foi meu caso. Nunca tive inimigos em Pombal. Frequentava grandes papos – nos quais mais ouvia do que falava - em rodas enormes de conversas na grande calçada da Rua do Rio, diante da casa de Nena Queiroga, dona do Primeiro Cartório da cidade, culta e viajada, que me lembrava muito – por seu aplomb e porte – Deborah Kerr, atriz britânica em evidência, naqueles tempos.

De Nena li as obras completas de Somerset Maughan, autor, coincidência ou não, inglês. Nesses encontros sempre estava o médico Dr. Atêncio Bezerra Wanderley, que se tornaria grande amigo meu e personagem de meu romance Relato de Prócula. Foi a pessoa de maior bagagem intelectual que conheci em toda a minha vida. De sua estante li a maioria dos livros sobre política, economia e filosofia que me passaram pelas mãos. Lá estava sempre, também, Dr. Nelson Nóbrega, juiz, que – entre outras coisas - me emprestou a Suma Teológica de Thomás Aquino. E aí chegava um jovem padre, chegava o brilhante futuro doutor Plínio Leite Fontes, e eu sempre ia dormir “abastecido” pelos conhecimentos e atenção dessas pessoas. Atino, agora, que nenhum colega do Banco do Brasil aparecia por lá.

Pois bem.
Numa noite, todos tinham ido ao Cine Lux e só eu ficara no quarto do Grande Hotel, me lembro bem, escutando, a todo volume – incomodando os outros hóspedes, certamente! – a “Abertura 1812” de Tchaikowsky, numa radiola Telefunken que acabara de comprar.


Na verdade eu fora ao cinema com Lessa. O Bezerra, de fato, gostava de música erudita. Lembro-me de que eu lhe trouxe, de umas férias em Sorocaba, um LP com “O Martírio de São Sebastião”, do Debussy, com dedicatória de um ex-colega do Banco do Commércio e Indústria de São Paulo, o Sidney “Sinfônico”. Só não me lembro dos canhões russos bombardeando a Marselhesa naquela noite.

Mal o braço da agulha começara a despertar os primeiros acordes da música que dormiam nas trilhas do LP, subiram, do meio da rua, uma gritaria e o barulho típico de briga corporal.

Vim, com o Lessa, na mesma Rua do Rio das conversas na calçada, vendo a roda de homens tomando todo o espaço diante do hotel, até a esquina em frente – na verdade diante do Bar do Zé Preto, que ficava na esquina do prédio (vê-se, na foto acima, que ali, hoje, há uma oficina e loja de motos e bicicletas).

Corri até à janela e vi, lá embaixo, um rapaz caído no chão e um outro, bem mais forte do que ele, chutando-lhe o rosto que já estava todo ensanguentado.

Não houve chutes nem sangue.

No ruge-ruge dos curiosos que, em vez de apartar a briga partiam para olhar mais de perto a tragédia, eu distingui Solha, entrando na confusão, dando, por trás, uma gravata no agressor e puxando-o para impedir que ele continuasse batendo na vítima que, ao ver o agressor imobilizado, levantou-se e partiu para esmurra-lo. Aí Solha, com o outro braço, conseguiu dar-lhe outra gravata e ficou segurando os dois pelos pescoços para evitar a continuação da luta.

Eu e Lessa nos aproximamos do círculo de marmanjos, Lessa – distônico neuro-vegetativo – desviou-se tossindo , passou diante do bar e se foi para a entrada lateral do hotel (sob a sacada, na foto). Passei pela paliçada humana, vi os dois sujeitos em luta – um, conhecido nosso, forte, o outro, desconhecido, franzino – vi o magro querendo sair da contenda, vindo em minha direção, o outro lhe dar uma violenta punhada na nuca, avancei, num reflexo, meti a cabeça do frangote sob o braço direito, a do outro sob o esquerdo, imobilizei-os, ouvi grunhidos - “Larga, filho da puta, larga!!!”, impus condição, - “Só se parar com isso!”, “Larga, larga!” “Só se parar!” Os dois se aquietaram, soltei-os, vi que ambos estavam desorientados, peguei o mais fraco pelo braço: “Vou escoltar você pra longe daqui!” Os homens deram passagem, sai com o rapaz até a praça do Bar Centenário, a um quarteirão dali.

Rapaz, quando eu vi Solha, um cara que, àquela altura, já não era apenas um colega de trabalho, mas um amigo com quem eu tinha muita afinidade, envolvido numa briga, no meio de uma porção de pessoas que, de certo modo, eram todas contra nós, eu desci desesperado a escadaria para ajudá-lo. Fiz isso vestido apenas com a calça do pijama, descalço, sem uma gilete no bolso. Mas fui, dominado por um sentimento mais de solidariedade que de coragem! Meti-me no meio da confusão, conseguimos controlar os ânimos enfurecidos e fomos dar apoio ao agredido, retirando-o do campo de luta, uma arena formada por centenas de curiosos, a maior parte embriagada. Passava das dez da noite, não havia farmácias abertas, o hospital ficava longe. Resolvemos conduzi-lo, ferido, até a Delegacia de Polícia, a fim de que se registrasse a queixa. Lá chegando, tudo fechado! Não nos restava alternativa se não deixá-lo em sua casa que ficava junto à igreja do Rosário.

Saí com o rapaz, levei-o pela Rua do Rio, até chegar à Praça do Bar Centenário, onde o vi mandar-se pra casa. Aí chegou o Bezerra, descalço, calção de pijama, dizendo-me que era melhor dar a volta ao quarteirão, pra chegar ao hotel, pois pelo que vira e ouvira, a coisa estava preta pra mim. Nunca fui corajoso nem covarde, apenas anestesiado pra essas coisas. Era como se eu soubesse que não morreria tão cedo, pois haveria de fazer grandes coisas – o que, aliás, não se cumpriu. “Não, eu vou por onde estava indo, antes da confusão.” Fomos, os dois, rumo ao hotel. Ao chegarmos, a homarada abriu passagem pra gente e vi que o outro agente da briga estava no balcão do bar, de costas para a rua, bebendo com os amigos.

Quando fizemos isso e começamos a voltar para o hotel, chegaram uns meninos correndo e disseram que a gente não fizesse aquilo porque eles vão atirar em vocês dois! Estão uns quatro no bar, tudo armado, só esperando vocês passarem na calçada para atirar!

Não me lembro de criança alguma, arma nenhuma.

Quando o senhor agarrou o fortão pelo pescoço, pisou no pé dele e estourou seu dedão! Ele tá dizendo que vai se vingar! Não vão que vocês morrem!

Não. Somente fiquei sabendo do desmantelo, que - sem querer - causara, bom tempo depois, num sete de setembro em que fui almoçar na casa do gerente da agência, José de Nazaré, conhecido como Zé de Nana. Estava no terraço dele, tomando uísque, quando o homem chegou, ... com o bendito Lessa. Havia uma cadeira vazia ao meu lado, o cara sentou-se, disse-me que guerreiro que é guerreiro toma cachaça, referindo-se à expressão usada lá para designar quem bebe e não tomba, pediu uma garrafa ao dono da casa, foi atendido, tomamos outra, e aí foi quando ele tirou o sapato, a meia, mostrou-me o dedo arrebentado.

Os meninos debandaram na carreira de volta ao local onde se daria a chacina. Os curiosos que estavam aglomerados no bar recuaram para baixo do meio fio e deixaram livre a calçada por onde andávamos. Só os quatro ficaram encostados no balcão. (...) Quando nos aproximamos, instalou-se um silêncio de cemitério somente quebrado pelas pisadas fortes que Solha dava com seu sapato cavalo de aço, cujos saltos tinham umas placas de metal que estouraram o dedão do agressor.

Nunca tive esse tipo de calçados.

Entramos na arena, eu quis apressar os passos, Solha, de forma disfarçada, segurou meu braço. Paramos em frente ao bar, viramo-nos para eles e os encaramos com as caras mais feias que nosso pavor permitia.

Não paramos, não fizemos cara feia, não havia pavor algum. Vi que não havia ninguém a enfrentar, passei direto, dobrei a esquina, andei, com Bezerra, na calçada do beco escuro, abrimos a porta lateral do hotel, entramos, cada um foi pro seu quarto.

Nisso, o mais forte deu uns três passos à frente e aproximou-se de nós com a parte de baixo da camisa desabotoada o que permitia a visão do cabo da arma que trazia à cintura. Encarou Solha e apontou para o dedão do pé que, inchado, roxo e com manchas de sangue, se destacava dos demais pela abertura da sandália. Solha emprestou à voz o efeito estereofônico que George Stevens botou na do Shane quando ele encara o pistoleiro Wilson, no final de Os Brutos Também Amam:

- Foi sem querer! Desculpe!

Isso me lembra outro filme, esse do Ford: “O Homem que Matou o Facínora”: se a lenda é melhor do que a realidade, publique-se a lenda.

A troca de olhares furiosos, típica dos boxeadores antes do início das lutas, durou alguns segundos. Até que o agressor concluiu:

- Por essa passa! Mas se preparem que vou pegar vocês na virada!

Não. Cheguei ao meu quarto, deitei-me, algum tempo depois chegou o Édson, colega de Patos que namorava uma garota de Pombal, e sempre se hospedava no hotel nos fins de semana.

- O cara tá chamando os chapeados pra vir com ele, matar você.
Chapeados eram carregadores que ficavam no ponto dos ônibus interurbanos, logo ali perto, e que usavam velhas bolas de futebol, murchas, na cabeça, pra sustentar o peso das malas dos que chegavam. Cada um tinha uma plaquinha acima da testa, com um número, daí “chapeados”. Blefei:

- Pode dizer a ele que recebo todo mundo na bala. Não sei se todos, mas ele, pelo menos, morre, com certeza. Só iria comprar um 38 vários anos depois, já casado, quando me disseram que Antonio Letreiro fora pago pra me matar. Mas isso já é outra história.

Um comentário:

Soares Feitosa disse...

Começo a desconfiar que cada um de nós maneja um photoshop particular. Não é que ninguém seja mentiroso, mas o tempo nos leva, involuntários, a emplacar a versão mais amena... Por isto, num manuscrito do Mar Morto: "Homem algum sabe a história completa". Justo porque cada qual, ainda que personagens da mesma história, photoshopeia a sua. Bom, comigo tem acontecido assim mesmo. Sabia eu a minha história de um jeito, mas vem um cabra, daquele tempo e me diz: "Foi assim não, mestre Chico; foi assim, foi assado... eu estava lá".De princípio, ficava eu muito portugal da vida; hoje, passo a entender que cada um de nós, sem querer, tira uma brasa daqui, bota outra ali, etc. Sim, isto mesmo, meu compradre Cristo: "O que é a verdade?" Quem disse que Ele respondeu! (Agora, que está bom o relato, está. Em suma, vale a história melhor contada, a única verdadeira). Texto meu nesse sentido, a eleger a história verdadeira: "Pendularam o matador do coronel" (de pêndulo). Pensei que estava fácil de mandar, mas não está. Mandarei logo mais. Com o abraço do seu leitor. SF