Moacir Japiassu acaba de lançar, pela Editora Nova Alexandria, seu nono livro,– Carta a uma paixão definitiva. Publicamos aqui uma das crônicas que fazem parte do livro. Moacir é autor de Unidos pelo vexame, A Santa do cabaré, Concerto para paixão e desatino, Quando alegre partiste (romances), O sapo que engolia ilusões (contos) e Danado de bom (culinária). Publicou também Jornal da ImprenÇa, antologia das melhores críticas à mídia brasileira que fez durante anos em revistas e que hoje faz no site www.comuniquese.com.br.
Moacir Japiassu
À saída do Leme Palace Hotel, no Rio, senti a mão agarrar-me o braço. “Míster, ô míster!”, gritou no meu ouvido o sujeito grandalhão, barba por fazer, suado, camisa aberta ao peito. Era motorista de táxi querendo passar a perna em turista. Nessas horas costumo fazer cara de mau e carregar no sotaque nordestino.
“Oxente, cabra besta! Vai segurar o braço da tua mãe!”, disse-lhe, num entredentes à moda do Capitão Virgulino, nosso considerado Lampião. O motorista ficou perplexo, jamais esperaria semelhante “fora” de um senhor ruivo, engravatado, hospedado em hotel carioca. Eu tinha toda a pinta de gringo e, conseqüentemente, otário.
A vida inteira me vi em situações semelhantes, a pagar pedágio por ser ruivo em terra de gente morena. Em compensação, tratam-me como a um igual se estou nas ruas de Paris, embora, tanto lá quanto cá, cause certa estupefação se abro a boca e falo... Estou, porém, acostumado a driblar essas dificuldades e a experiência me ensinou a falar o máximo possível no Brasil e guardar prudente silêncio em país estrangeiro, excetuando-se Portugal. Aqui, de qualquer modo, sofro mais, pois além dos facínoras do volante sou assediado por vendedores de souvernirs , garçons e maitres , mendigos de toda sorte (?) e, principalmente, assanhadas senhoritas da noite.
Aflição maior, todavia, assalta-me quando reencontro velhos companheiros ou conhecidos de lugares onde estive algum dia. Cumprimentam-me; abraçam-me; fazem as mais embaraçosas perguntas. Quem são, Deus meu?! Como sou, talvez, o único ruivo que esse pessoal conhece, levo grande desvantagem; afinal, se não me podem confundir com outrem, a mim me resta a mais completa confusão. Aliás, até inventei um ardil, na tentativa de equilibrar um pouco as emoções de tais reencontros.
“Consideradíssimo!”, exclamo, quando o desconhecido se aproxima com amistosas palavras. O “consideradíssimo” permite-me algum tempo para forçar a memória, a garimpar um nome ou situação. Às vezes fracasso e, depois da interjeição, parto para outros artifícios, como “criatura de Deus”, “gente boa”, “cabra da peste” e tantos outros destroços capazes de me manter à superfície em tão desesperador e tempestuoso oceano.
Certa vez, caminhava distraído pelo centro da cidade, a redigir mentalmente um “causo” nordestino para a falecida revista Status , quando um alinhado senhor barrou-me os passos. “Moacir, que satisfação! Venha de lá um abraço!”. Nos abraçamos com alegria. Quem seria? Para me chamar de Moacir, talvez fosse amigo de infância mas ele era bem mais velho. Seria paraibano? Não lhe notei sotaque. Quem sabe, mineiro, chegado à minha família nos anos em que vivemos em Belo Horizonte.
Resolvi arriscar: “Há quanto tempo, criatura de Deus!, bradei, com a mais sonora intimidade. “Ora, não faz tanto tempo assim...”, respondeu. Preocupado, engatei uma segunda: “É que quando a saudade é grande o tempo dobra”, menti; ele quis saber de minha mãe! “Como vai dona Neusa? Diga a ela que o retrato do Nonô ficou ótimo e vou mandar uma cópia pelo correio. Você vai querer uma?”.
- Quem, eu?!
- Claro! O Nonô te adora. Aliás, ele gosta mais de você do que do Celso...
Diabos, o homem conhecia a minha família inteira! Celso é meu irmão. Quem seria o tal do Nonô? Agradeci, ele perguntou se mandaria para minha casa ou para o jornal. O endereço, o desconhecido sabia, só pediu confirmação do CEP. Nos despedimos com outro abraço, ele rogou que o recomendasse à minha mulher e filho.
Perdi o rumo de meus passos e o fio do “causo”, após tão desastroso encontro. Puxei, feri a memória inutilmente. Jamais tinha visto aquele homem em minha vida. Minha mulher também não fazia a mínima idéia, apesar da descrição detalhada que fiz. Fiquei com o Nonô na cabeça, telefonei para minha mãe: “Você conhece alguém com esse nome?”. Ela jurou que não. “Pois você vai receber um retrato dele”, avisei. Dali a menos de uma semana chegou lá em casa um envelope, com carimbo da cidade de Ponte Nova, Minas; dentro, o retrato de um soldado da Polícia Militar, abraçado a enorme cachorro pastor alemão. Na dedicatória, apenas rubricada e ininteligível, lia-se: “Taí o Nonô. Não está uma beleza? Ruth manda grande abraço e diz que o fígado tá jóia”.
Minha mãe, que morava na cidade de Cunha, interior de São Paulo, também recebeu uma cópia do retrato e achou que Nonô fosse o cachorro. Isso se passou há onze anos. Nunca mais tive qualquer notícia daquele tão íntimo estranho.
Um comentário:
Não seria o Juscelino, consideradíssimo? Hugo
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