quinta-feira, novembro 02, 2006

UMA CRIATIVA SUGESTÃO PARA O SISTEMA CARCERÁRIO BRASILEIRO

Riobaldo Tatarana

O que dá a gente deixar a terra natal e perder totalmente o contato com ela. Aí, vê uma notícia de lá com repercussão nacional, e fica com cara de tacho. Foi o que aconteceu dia desses a um amigo paraibano, melhor dizendo, pessoense (eta nomezinho chato!) que reside há décadas aqui em Recife e perdeu o contato com a terrinha. Em suas antigas viagens à gleba, era obrigado a atravessar o promissor município de Alhandra, à beira da rodovia - naquela época (década de 1960) ainda um acanhado burgo, com poucas casas e muitas árvores. Quem, como eu, gosta de visitar a capital paraibana (recuso-me a falar o nome, detesto essa homenagem boboca a um cara que levou um tiro por andar fuçando a vida privada de seu rival), sabe muito bem que ao longo dos anos Alhandra foi crescendo, modernizando-se, adquirindo importância não só local como regional, eis que chega a ameaçar a área de influência da poderosa Goiana, em Pernambuco. Hoje, além de um expressivo pólo cultural, com duas faculdades – Letras e Pedagogia, se não me engano – Alhandra possui a maior fábrica de vassouras de piaçava do Estado e faz parte do calendário turístico brasileiro com sua famosa festa de rua.

Mas há um ponto, que esse paraibano desbotado não conhecia, e que eu, recifense roxo, já sabia há muito tempo: Alhandra é o ponto final de uma interessantíssima política carcerária adotada pelo Estado, num processo de progressão da pena que já está sendo estudado em muitos centros internacionais, inclusive no Tribunal contra Crimes de Guerra, de Haia. A idéia nasceu no governo Burity, ganhou corpo no governo Cunha Lima, e foi finalmente implantada há uma década. Dizem até que a rivalidade Burity X Cunha Lima, que culminou com este último desfazendo temporariamente o maxilar buritizano com um tiro, deveu-se a ciúmes quanto à paternidade da idéia. Pouco importa. O que vale é que é muito boa, e tem levado à Paraíba muitas autoridades brasileiras e estrangeiras do meio jurídico, dedicadas ao estudo do sistema prisional.

O projeto consiste simplesmente no seguinte: os apenados com pena superior a dez anos começam sua trajetória carcerária na cadeia de Juarez Távora, um município sertanejo famoso por possuir o presídio mais rigoroso do planeta, construído com base em reminiscências de Caiena. Ali, o prisioneiro, além do vexame de viver numa cidade com esse nome, aprende que o crime não só não compensa como pode levar o indivíduo a percorrer, ao vivo e em cores, o círculo infernal da Divina Comédia, e sem a companhia de nenhum poeta. Surras, longos jejuns, solitárias subterrâneas, uma série de amenidades que fariam a delícia do Torquemada. Após um período – que varia segundo o tamanho da pena - nesse interessante lugar, o preso, caso tenha demonstrado bom comportamento e não tenha se metido em nenhuma encrenca, é transferido para um outro presídio, se não me engano em Piancó, depois em mais outro, mais perto do litoral, cada um progressivamente mais ameno. Até que chega ao de Alhandra, já com apenas um décimo da pena por cumprir.

No presídio alhandrense, o apenado tem que exercitar toda sua criatividade e tudo que aprendeu nos presídios anteriores, no sentido de proporcionar sua própria fuga. Há em volta do presídio fossos com piranhas, os muros são altos e eriçados de farpas eletrificadas, e os guardas possuem armas de precisão com mira de laser, de forma que escapar dali é uma obra para peritos de altíssimo gabarito. Para tornar a fuga ainda mais difícil, as autoridades proíbem rigorosamente a entrada clandestina de armas e celulares – tão comum e bem aceite nas prisões do Rio de Janeiro, por exemplo – de forma que o apenado só conta com sua inventividade. Caso consiga fugir, apresenta-se no dia seguinte às autoridades e então a Prefeitura local realiza, no final do mês, uma festa em praça pública, com banda de música e farta distribuição de birita, à qual comparecem o governador do Estado, o presidente do Tribunal, a câmara de vereadores em peso, e o fugitivo, agora com a pena oficialmente zerada, recebe uma ficha limpa e uma ajuda de custo para reiniciar sua carreira em outro lugar, com novo instrumental técnico.

Eu, que tenho estudado os sistemas prisionais de outros países, não me lembro de solução mais inteligente e interessante do que essa. Em primeiro lugar, por seu aspecto, digamos assim, lúdico, que leva o apenado a ver o cumprimento de sua pena como uma progressiva especialização, até que possa demonstrar que não ficou todos esses anos como hóspede do governo em vão, que aprendeu alguma coisa que lhe pode ser útil para o resto da vida. Em segundo lugar, porque a família do preso recebe-o não mais como alguém “que cumpriu pena”, mas como uma espécie de herói, exaltado por discursos de autoridades e com sua graduação atestada em pergaminho. Tudo isso sem falar nos evidentes benefícios para o turismo local. Consta que muitos ônibus de cidades vizinhas, até de Alagoas, até da Bahia, trazem multidões de turistas para Alhandra, que fica com os hotéis lotados. A “Festa do Se Mandou”,como ficou conhecida a cerimônia, faz parte hoje do calendário da PBTUR e já está sendo cogitada como uma das atrações de novembro, mês geralmente meio mole para atividades turísticas.

Pois bem, esse tal amigo paraibano não sabia de nada disso. E ficou assustado quando tomou conhecimento, um dia desses, que este ano a fuga contou com 28 apenados – um número recorde na história de Alhandra. A festa deverá realizar-se lá pelo fim do mês, e eu já reservei hospedagem no Acais Palace, que fica em um distrito próximo à cidade. Aproveito então para convidar os paraibanos desbotados, como esse meu amigo, a comparecerem à festa. E me digam se desde as famosas fugas do cárcere de Reading, se desde a revolta de Spartacus, já tinham ouvido falar de algo semelhante. E eu, pernambucano doente, tenho de curvar-me e reconhecer que, com essa iniciativa, em matéria de criatividade a pequenina e heróica Paraíba exporta para o mundo.

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