PRA QUE SERVE?
Riobaldo Tatarana
Nós, que vivemos nos tempos do capitalismo selvagem (quanta injustiça com os pobres selvagens há nessa expressão!) estamos por demais habituados a atribuir valor às coisas pelo critério de sua utilidade prática. A primeira vítima dessa deformação é a filosofia, que aos olhos do vulgo parece a coisa mais inútil que se pode conceber. Não vou me meter a defender a filosofia. Para isso, temos de esperar a opinião do nosso emérito Professor Antônio Serafim, leitor assíduo desse blog, e que respira a plenos pulmões o ar rarefeito dos estudos filosóficos. Eu fico na planície, e reproduzo aqui a pergunta que ouvi um dia desses de um capitalista obtuso: para que servem os intelectuais brasileiros?
Em meados do século passado, Jorge de Lima falava do desprezo que certos graúdos e burros da sua época votavam aos poetas. E comentava: “Poetas vivendo em mundos de lua não servem pra capitalizações, negócios e sordícias, dirão que poetas são desprezíveis”. Voltando ao meu capitalista obtuso, deixem-me antes explicar que para ele, como para muita gente, intelectual é “quem vive lendo ou escrevendo livros”. Para que serve então uma pessoa assim? A pergunta não pode ser mais atual, sobretudo quando sabemos que a ideologia vigente nos altos escalões da República é a de que a educação – que abrange a leitura, o uso efetivo dos livros – é uma atividade meramente decorativa, sem a qual se pode passar muito bem e chegar até aos mais altos postos.
Se a opinião pública não fosse tão ingrata e desinformada, levantar-se-ia furiosa contra essa pergunta descabida sobre a utilidade dos homens de letras. Quando vivíamos nas trevas da ditadura, apesar da censura boçal à imprensa e aos livros, foram os intelectuais que explicaram a essa mal-agradecida os males da repressão e os benefícios da democracia, mesmo com os vícios e imperfeições que a acompanham. Muitos deles foram presos, espancados, mortos. O que atesta que os ditadores, por mais burros que sejam, sabem muito bem que, embora vivendo no remanso das bibliotecas, o intelectual está longe de ser inofensivo. O intelectual pensa, e comunica seus pensamentos, em jornais, revistas livros, salas de aula, conferências – e aí vai todo o seu perigo e ameaça, porque do pensamento à crítica e desta à revolta há apenas dois passos.
Quero, no entanto pegar a pergunta do tal capitalista obtuso e trazê-la para esses tempos mais amenos de democracia, eleições livres, congresso a todo vapor, a mídia falando o que quer. Ora, nesse contexto, o intelectual assume aquele antigo slogan da palha de aço: tem mil e uma utilidades. Além daquelas nobres e já sabidas, como o estudo, a pesquisa, a reflexão, a formação de opinião, a vigilância sobre os valores que estão sendo formados na sociedade, o intelectual tem outras utilidades menores, mas nem por isso menos úteis ao funcionamento da máquina social. Assim, por exemplo, os intelectuais têm sido muito solicitados à função de conferir dignidade a revistas de sacanagem. Dessa forma, os mais safadinhos, que compram essas revistas para levá-las ao banheiro, contam com a bela desculpa de que estavam interessados no artigo do fulano sobre, digamos, os rumos da arte pós-moderna.
Outra atividade, congênere a essa, é a de emprestar um nome limpo e honrado a certas universidades particulares, que na verdade não passam de arapucas. Deixem-me explicar o quadro: no Brasil, as universidades mais sérias e dignas de respeito são as públicas, apesar da campanha solerte de sucessivos governos, ditos democráticos, para erradicá-las através do sucateamento de suas instalações e do empobrecimento do corpo docente. Mas há também universidades particulares que são ilhas de excelência, instituições sérias, que lutam com grande esforço para manter o padrão. Não dou aqui exemplos para não pensarem que estou fazendo merchandising. Pois bem: como essas particulares de bom nível são poucas, e as públicas raramente conseguem fazer concurso para admissão de novos professores, aqueles que optaram pela carreira acadêmica, e que para isso investiram tempo, dinheiro e dedicação, que concluíram seus mestrados e doutorados à custa de inenarráveis sacrifícios, são obrigados a buscar o pão de cada dia nas universidades particulares, mesmo que sejam péssimas.
Nessas universidades, que há pouco brindei com o epíteto de “arapucas”, vige a seguinte mentalidade administrativa: o aluno é quem paga, portanto ele tem sempre razão. Se um professor entra em atrito com um aluno relapso ou desonesto, é obrigado a engolir qualquer afronta, sob pena de perder o emprego. Sei de muitos casos, mas relato apenas dois: no primeiro, o professor foi chamado por um aluno irado para “resolver a discussão lá fora, no braço”. Soube-se depois que esse sujeitinho era policial e andava armado. No segundo, um aluno mandou a professora tomar... pois é, exatamente isso, somente porque ela ousara repreender suas constantes perturbações da aula. Em ambos esses casos, adivinham qual foi a resposta da direção ante a queixa dos professores? Vou formulá-la na linguagem digna desses diretores: “Fica na tua, malandro, que quem manda a bufunfa pra teu contracheque é esses alunos mesmo!” Não é de chorar?
2 comentários:
Como velho professor vejo com a maior preocupação essas maluquices que o nobre Tatarana relatou em tão brilhante artigo. Um desses donos da bufunfa um dia me perguntou, após devidamente admoestado, se "eu estava querendo aparecer nas folhas policiais". É de chorar mesmo, meu caro Riobaldo.
Como estive viajando nos últimos dez dias, só hoje li o artigo de Riobaldo, "Pra que serve?'. Ele está acobertado de razão e verdade. Todos os governos, desde que me entendi de gente, pouco ligam para a educação, em especial, os três últimos. Eles sabem perfeitamente que um povo educado e politizado não votaria neles. A qualificação de "arapucas" que Riobaldo confere às universidades particulares é de absoluta propriedade, haja vista que visam e
priorizam o lucro, no mais das vezes, em detrimento de um ensino qualificado.
Tentei enviar este comentário diretamente através do seu blog, mas não consegui.
Se possível, faça isso por mim.Um forte abraço, Serafim
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